sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Montanha Mágica - Thomas Mann



 Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava, enquanto um fiacre o levava à estação. 

O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido.

Reinava na natureza aquele estado de transição, descolorido, melancólico, desprovido de vida, que precede imediatamente o anoitecer definitivo. 

como se quisesse dar a entender que no contato com ele todo acanhamento era supérfluo e somente deveria reinar a mais risonha confiança. 

Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heróico, ou então uma vitalidade muito robusta. 

A maioria mostrava-se alegre, provavelmente sem motivo particular, apenas por não terem preocupações imediatas e estarem reunidos num grupo numeroso. 

-meu Deus – disse enfim – eles estão tão livres... quero diz é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes vem a idéia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso, quando estiver mais tempo aqui em cima.


e quando a gente tem interesse por alguma coisa, não tarda compreendê-la, não é?... Mas, que se passa comigo? 

-meu vício? Não diga isso, Sr. Settembrini.
– Por que não? É preciso chamar as coisas pelos seus nomes verdadeiros, e fazê-lo energicamente. Isto fortifica e eleva a vida. Também eu tenho vícios.

Com efeito, “sempre alegre”, se bem que às vezes de uma alegria meio forçada. 

Todo caminho que trilhamos pela primeira vez é muito mais longo do que o mesmo caminho quando já o conhecemos.

– Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. 

– Pois é, quando se presta atenção ao tempo, ele passa muito devagar.

Culti¬vava seu jardim, ... e tudo quanto dizia era belo e sadio. 

Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual tudo já foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamen¬te o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseja manifestar-se... 

Eu não quis perguntar, para não mostrar a minha ignorância. 

Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas res¬trições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tem¬po, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fe¬char de olhos. O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa – esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeita-mente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento, um reforço, um retardamento da nos¬sa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se “aclimata”, começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana – de quatro, por exemplo – é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo produz efeitos além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua sus¬pensão. E o senso de tempo de quem já está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possuiu desenvolvido em alto grau – o que é sinal de pouca força vital –, volta a ador¬mecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu am¬biente habitual, e a viagem não passasse do sonho de uma noite.

A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. 

pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas trevas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização, rompia o círculo mágico da castidade e ressurgia, ainda que sob forma metamorfoseada, dificílima de reconhecer... E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição?

O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado.

A técnica – expôs Settembrini – subjugava cada vez mais a natureza, pelas comunicações que criava, pelas redes de estradas e telégrafos que construía, e pelas vitórias que conquistava sobre as diferenças de clima; dessa forma apresentava-se como o meio mais seguro para aproximar os povos, para favorecer o contato entre eles, para levá-los a acordos humanos, para destruir os preconceitos existentes, e, finalmente, para estabelecer a união universal. A raça humana tinha a sua origem na escuridão, no medo e no ódio, mas avançava e subia por um caminho brilhante, rumo a um estado terminal de simpatia, luminosidade íntima, bondade e felicidade. O veículo mais apropriado para transpor esse caminho era a técnica, declarou Settembrini. 

Devia ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz a belas ações. Pois escrever bem já era quase pensar bem, e daí a agir bem não havia muita distância. 

A existência é mais divertida a dois

Eu mesmo deveria, talvez, formar com mais freqüência uma opinião própria, em vez de aceitar as coisas como se apresentam. 

Tiraremos uma vista bonita do seu interior; o senhor gostará de espiar para dentro da sua própria pessoa. 
A calma é o primeiro dever do cidadão, e a impaciência apenas o prejudica. 

Manifestam pouca cultura os viajantes que zombam dos costumes e dos conceitos dos povos que os acolhem; há muitos tipos de qualidades suscetíveis de conferir honra a quem as possui. 

comme un rêve singulièrement profond, car il faut dormir très profondément pour rêver comme cela... Je veux dire: c’est un rêve bien connu, rêvé de tout temps, long, éternel, oui, être assis près de toi comme à présent, voilà l’éternité.
– Oh! L’amour n'est rien, s’il n’est pas de la folie, une chose insensée, défendue et une aventure dans le mal. Autrement c’est une banalité agréable, bonne pour en faire de petites chansons paisibles dans les plaines.

– je t’ai aimée de tout temps, car tu es le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon éternel désir... (- Eu te amei o tempo todo, porque és tu a minha vida, meu sonho, meu destino, meu desejo eterno ...)

Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – onipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, “traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo. qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!

 E eles punham óculos de cor, verdes, amarelos, vermelhos, para poupar os olhos, mas sobretudo para proteger o coração.


E uma espécie de comoção apoderou-se dele, uma singela e devota simpatia por esse seu coração, o coração palpitante do homem, que pulsava, nesse ermo glacial, tão sozinho com seus problemas e seus enigmas.

Olhou o relógio de ouro, com tampa de mola e monograma, que, nessa solidão desolada, continuava a tiquetaquear, viva e lentamente, semelhante ao seu coração, o comovente coração humano a pulsar no calor orgânico do tórax...

É isso o que tanto me comove e faz com que me apaixone por eles: o espírito e a mentalidade que formam a base do seu ser e lhes determinam a união e a convivência!”
 Sou tentado a dizer que não extraímos os sonhos unicamente da nossa própria alma. Sonhamos anônima e coletivamente, embora de forma individual. A grande alma, da qual tu não és mais do que uma partícula, talvez sonhe às vezes através de ti, à tua maneira. Sonha com coisas que sempre lhe enchem os sonhos secretos: sua juventude, sua esperança, sua felicidade e sua paz, e também a sua ceia sangrenta. 

Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios. 

Em seguida se ergueu e chorou, deixando correr sobre as faces lágrimas como aquelas que tanto haviam ardido no rosto do oficial da marinha inglesa; esse líquido claro, que jorra neste mundo a toda hora e em toda parte, com tanta abundância e com tanta amargura que os poetas deram o seu nome ao “vale” terreno; esse produto alcalino e salgado das glândulas que o abalo dos nervos, causado por uma dor penetrante, arranca ao nosso corpo, e que, como Hans Castorp sabia, continha além disso traços de mucina e de albumina.



Será que ele me fez algum mal intencionalmente? Ofensas devem ser feitas de propósito, do contrário não são ofensas. 







Um comentário:

  1. Oi Jamile, você poderia me informar em quais páginas estão essas citações?
    Meu e-mail é: gama.william@gmail.com
    Muito obrigado !!

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