Oi
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de
alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja,
se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o
oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só
elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a
pouco uma alegria
difícil; mas chama-se alegria.
Estou
procurando, estou procurando. Estou tentando
entender.
Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não
quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho
medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me
aconteceu.
Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a
saber como viver, vivi
uma outra?
se eu
for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo
inteiro
terá que se transformar para eu caber nele.
E voltei
a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:
Como
se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o
que
for sendo?
Perder-
se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.
Dar a
mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.
Vou
criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável.
Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem
mentir.
Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o
grande
risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu
único
modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo -
traduzir
o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem
sequer
entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem
sonâmbula
que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até
criar a verdade do que me aconteceu.
Eu me
pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente,
verei
mais que a escuridão? ... E se eu olhar a claridade com uma
lente,
com um choque verei apenas a claridade maior.
Ao
olhar o retrato eu via o mistério.
Olhava de relance o rosto fotografado e, por
um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também
inexpressivo.
todos
os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa.
O que
os outros recebem de mim reflete-se então de volta
para
mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu.
Um
olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade,
ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim.
Um
passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um
passo
antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida
A
espirituosa elegância de minha casa vem de que tudo aqui está entre aspas.
Somente
na fotografia, ao revelar-se o negativo, revelava-se algo que,
inalcançado
por mim, era alcançado pelo instantâneo: ao revelarse
o
negativo também se revelava a minha presença de ectoplasma.
Fotografia
é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma
ausência?
“Grite”, ordenei-me quieta. “Grite”, repeti-me
inutilmente com
um
suspiro de profunda quietude(...)
Mas se
eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais
pudesse
parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada
por
mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência,
ninguém
se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só
enquanto
eu não assustar ninguém por ter saído dos
regulamentos.
Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos
o
grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar
viva,
em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem
para
fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser
gritante.
Olhei
para o teto com olhos pesados. Tudo se resumia
ferozmente
em nunca dar um primeiro grito - um primeiro grito
desencadeia
todos os outros, o primeiro grito ao nascer
desencadeia
uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres
gritantes
que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror.
Se eu
gritasse desencadearia a existência - a existência de quê? a
existência
do mundo. Com reverência eu temia a existência do
mundo
para mim.
Perdão
é um atributo da matéria viva.
Só que
não estava suportando ficar apenas sentada e sendo, e então queria fazer.
A moralidade.
Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em
agir como se deveria agir, e o problema
moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à
medida que faço o que devo, e sinto como deveria? De repente a questão moral me
parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema
moral,para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos
exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível.
Pequeno, se se atinge; inatingível, porque nem ao menos se atinge. “O escândalo
ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o escândalo” - era no Novo
Testamento que estava dito? A solução tinha que ser secreta. A ética da moral é
mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.
Embora
eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso
ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa
humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha
culpa.
Não para me desculpar e para fugir mas
porque a culpa me amesquinha.
Quero o tempo presente
que não tem promessa, que é, que está sendo. Este é o núcleo do que eu quero e
temo.
A verdade não tem
testemunha? ser
é não saber? Se a pessoa
não olha e não vê, mesmo assim a
verdade existe? A verdade
que não se transmite nem para quem vê.
Este é o segredo de se
ser uma pessoa?
E também o meu medo era
agora diferente: não o medo
de quem ainda vai entrar,
mas o medo tão mais largo de quem já
entrou.
Tão mais largo: era medo
de minha falta de medo.
Mas eu bem sabia que não
é só mulher que tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato, entre dois
grãos de areia por mais
juntos que estejam existe um intervalo de
espaço, existe um sentir
que é entre o sentir - nos interstícios da
matéria primordial está a
linha de mistério e fogo que é a
respiração do mundo, e a
respiração contínua do mundo é aquilo
que ouvimos e chamamos de
silêncio.
O perigo de meditar é o
de sem querer começar a pensar, e pensar já não é
meditar, pensar guia para
um objetivo, O menos perigoso é, na
meditação, “ver”, o que
prescinde de palavras de pensamento.
Eu sou
mansa mas minha função de viver é feroz.
Pois
preciso saber exatamente isto: estou sentindo o que
estou
sentindo, ou estou sentindo o que eu queria sentir? ou estou
sentindo
o que precisaria sentir?
Entendi
então que, de qualquer modo, viver é uma grande
bondade
para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto
resulta
na grande bondade. ...Viver é dádiva tão grande que
milhares
de pessoas se beneficiam com cada vida vivida.
a vida
é uma missão secreta. Tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela,
me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê. E o
segredo
é tal que, somente se a missão chegar a se cumprir é que,
por um
relance, percebo que nasci incumbida - toda vida é uma
missão
secreta.
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