quarta-feira, 27 de abril de 2016

A Paixão Segundo GH - Clarisse Lispector



Oi
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de
alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja,
se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o
oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só
elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a
pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.

Estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me
aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a
saber como viver, vivi uma outra?
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo
inteiro terá que se transformar para eu caber nele.

 E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:

Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o
que for sendo?

Perder- se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.

Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem
mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o
grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu
único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo -
traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem
sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem
sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu.

Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente,
verei mais que a escuridão? ... E se eu olhar a claridade com uma
lente, com um choque verei apenas a claridade maior.

Ao olhar o retrato eu via o mistério.

 Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo.

todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa.

O que os outros recebem de mim reflete-se então de volta
para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu.
Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim.

Um passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um
passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida

A espirituosa elegância de minha casa vem de que tudo aqui está entre aspas.

Somente na fotografia, ao revelar-se o negativo, revelava-se algo que,
inalcançado por mim, era alcançado pelo instantâneo: ao revelarse
o negativo também se revelava a minha presença de ectoplasma.
Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma
ausência?

 “Grite”, ordenei-me quieta. “Grite”, repeti-me inutilmente com
um suspiro de profunda quietude(...)
Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais
pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada
por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência,
ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só
enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos
regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos
o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar
viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem
para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser
gritante.
Olhei para o teto com olhos pesados. Tudo se resumia
ferozmente em nunca dar um primeiro grito - um primeiro grito
desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer
desencadeia uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres
gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror.
Se eu gritasse desencadearia a existência - a existência de quê? a
existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do
mundo para mim.

Perdão é um atributo da matéria viva.

Só que não estava suportando ficar apenas sentada e sendo, e então queria fazer.

A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o  problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como deveria? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral,para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível. Pequeno, se se atinge; inatingível, porque nem ao menos se atinge. “O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o escândalo” - era no Novo Testamento que estava dito? A solução tinha que ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.
Embora eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha
culpa. Não para me  desculpar e para fugir mas porque a culpa me amesquinha.

Quero o tempo presente que não tem promessa, que é, que está sendo. Este é o núcleo do que eu quero e temo.
  
A verdade não tem testemunha? ser
é não saber? Se a pessoa não olha e não vê, mesmo assim a
verdade existe? A verdade que não se transmite nem para quem vê.
Este é o segredo de se ser uma pessoa?

E também o meu medo era agora diferente: não o medo
de quem ainda vai entrar, mas o medo tão mais largo de quem já
entrou.
Tão mais largo: era medo de minha falta de medo.

Mas eu bem sabia que não é só mulher que tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus.

Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois
grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de
espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da
matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a
respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo
que ouvimos e chamamos de silêncio.

O perigo de meditar é o de sem querer começar a pensar, e pensar já não é
meditar, pensar guia para um objetivo, O menos perigoso é, na
meditação, “ver”, o que prescinde de palavras de pensamento.

Eu sou mansa mas minha função de viver é feroz.

Pois preciso saber exatamente isto: estou sentindo o que
estou sentindo, ou estou sentindo o que eu queria sentir? ou estou
sentindo o que precisaria sentir?

Entendi então que, de qualquer modo, viver é uma grande
bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto
resulta na grande bondade. ...Viver é dádiva tão grande que
milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida.

a vida é uma missão secreta. Tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela, me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê. E o
segredo é tal que, somente se a missão chegar a se cumprir é que,
por um relance, percebo que nasci incumbida - toda vida é uma

missão secreta.

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